Em uma decisão que ecoa o princípio da dignidade humana e da reparação justa, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou a continuidade dos pagamentos emergenciais a moradores atingidos pela tragédia do rompimento das barragens da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. A ordem judicial, emitida pela 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte, reforça a responsabilidade da mineradora Vale S/A em assegurar os meios mínimos de subsistência à população diretamente impactada.
A decisão, proferida pelo juiz Murilo Sílvio de Abreu no dia 28 de março, exige que os repasses do Programa de Transferência de Renda (PTR) sejam restabelecidos nos mesmos moldes anteriores à recente redução de valores, que ocorreu em março de 2025. A medida deve se manter até que seja comprovada a retomada das condições socioeconômicas equivalentes às observadas antes da tragédia de 2019.
A ação judicial foi proposta por três entidades com histórico de atuação junto aos atingidos por grandes empreendimentos: a Associação Brasileira dos Atingidos por Grandes Empreendimentos (Aba), a Associação Comunitária do Bairro Cidade Satélite (Acotélite) e o Instituto Esperança Maria (IEM). As organizações argumentaram que, mesmo após seis anos do desastre, os modos de vida das populações afetadas ainda não foram restaurados — o que justificaria não apenas a manutenção, mas também a ampliação da assistência financeira.
O pedido baseou-se no entendimento de que as comunidades têm direito à continuidade do Programa de Transferência de Renda ou à implementação de nova modalidade de auxílio emergencial até que seja assegurada a plena recuperação social, econômica e ambiental das áreas afetadas.
O colapso das barragens B-I, B-IV e B-IVA, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, no município de Brumadinho, deixou marcas profundas em Minas Gerais e em todo o Brasil. O rompimento das estruturas da Mina Córrego do Feijão, de responsabilidade da Vale S/A, provocou a morte de 272 pessoas, além de danos incalculáveis ao meio ambiente e à subsistência das comunidades locais.
Considerado o maior desastre ambiental da história brasileira, o episódio desencadeou uma série de ações judiciais e administrativas voltadas à reparação dos danos. Desde então, os processos relativos à reparação integral dos prejuízos têm tramitado prioritariamente na 2ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte.
Logo após o desastre, a Vale S/A instituiu o Pagamento Emergencial (PE) como forma de compensar, ainda que parcialmente, os prejuízos imediatos das famílias impactadas. Em fevereiro de 2021, um novo marco foi estabelecido com a celebração do Acordo Judicial para Reparação Integral, destinando R$ 4,4 bilhões à implantação do Programa de Transferência de Renda (PTR), que substituiu o auxílio emergencial anterior.
Esse novo programa passou a ser gerido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir de um termo de colaboração homologado em setembro de 2021. Os pagamentos, conforme previsto, iniciaram-se em novembro do mesmo ano.
Entretanto, em novembro de 2024, a FGV anunciou publicamente a redução dos valores pagos pelo PTR, alegando a previsão de encerramento do programa em janeiro de 2026. Tal redução impulsionou as três entidades a buscar judicialmente a retomada dos pagamentos em sua integralidade, o que foi atendido pela recente decisão do TJMG.
Para o juiz Murilo Sílvio de Abreu, a redução do benefício não encontra respaldo jurídico diante da realidade vivida pelas famílias atingidas. Ele destaca que os impactos sociais, econômicos e ambientais do rompimento das barragens ainda perduram, tornando inviável qualquer alegação de que a situação tenha retornado à normalidade.
“Há evidências nos autos de que as famílias e indivíduos atingidos ainda não alcançaram condições equivalentes às precedentes ao rompimento da barragem”, pontuou o magistrado em sua decisão. Ele ainda ressaltou que muitos não conseguiram retomar atividades como agricultura, pesca ou criação de animais, pilares da subsistência tradicional na região.
O juiz fundamentou sua decisão no artigo 3º, inciso VI, da Lei Federal nº 14.755/2023, que assegura medidas emergenciais e programas de transferência de renda como instrumentos legítimos de proteção à vida digna e à segurança social em cenários de calamidade.
Na decisão, o juiz determinou que a Fundação Getúlio Vargas apresente, no prazo de cinco dias úteis, o montante necessário para garantir o pagamento integral dos valores originalmente fixados no PTR, considerando o término programado para janeiro de 2026.
A Vale S/A também foi intimada a realizar o depósito judicial correspondente a um terço do valor apurado, igualmente no prazo de cinco dias. Essa medida visa assegurar a continuidade do benefício enquanto tramita a ação, prevenindo o agravamento da situação das famílias afetadas.
Mesmo com os esforços judiciais e institucionais, especialistas apontam que a reparação integral dos danos provocados pelo desastre de Brumadinho ainda está longe de ser concretizada. Os desafios envolvem desde a reconstrução de laços comunitários até a reestruturação de atividades econômicas locais, muitas das quais foram completamente inviabilizadas pelo impacto ambiental.
Além disso, há críticas quanto à gestão dos recursos e à demora na efetivação de medidas compensatórias. O encerramento prematuro do PTR, como propôs a FGV, é visto por lideranças locais como um retrocesso inaceitável diante das promessas feitas pelas autoridades e pela mineradora.
A decisão do TJMG pode estabelecer um precedente relevante para outros casos envolvendo desastres ambientais e grandes empreendimentos. Ao reconhecer que os auxílios devem ser mantidos até que os modos de vida anteriores sejam efetivamente restaurados, o Judiciário sinaliza para a necessidade de um olhar mais humano e abrangente sobre as políticas de reparação.
Essa postura reforça a ideia de que a responsabilização das empresas deve ultrapassar os limites financeiros, abrangendo também o compromisso com o restabelecimento da dignidade social, ambiental e cultural das populações atingidas.
Especialistas também cobram maior atuação dos órgãos públicos de fiscalização e acompanhamento das medidas compensatórias. A tragédia de Brumadinho evidenciou a fragilidade de mecanismos preventivos e a insuficiência das sanções administrativas aplicadas em casos de negligência corporativa.
É papel do Estado, através de suas instituições, garantir que os acordos firmados sejam cumpridos integralmente e que os direitos das vítimas não sejam tratados como moeda de troca. A fiscalização precisa ser contínua, técnica e independente, com participação ativa da sociedade civil.
A decisão do TJMG representa mais do que uma simples vitória judicial. Ela simboliza a resistência de comunidades que, mesmo diante da dor e da destruição, seguem lutando pelo reconhecimento de seus direitos. Ao determinar a continuidade dos pagamentos do PTR, a Justiça mineira envia uma mensagem clara: a reparação verdadeira vai além de cifras; envolve o resgate da dignidade, da memória e do futuro das pessoas.
O caminho da reconstrução é longo e complexo, mas decisões como essa reacendem a esperança de que a justiça, ainda que tardiamente, possa ser feita de forma íntegra, humana e efetiva.
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Fonte: Balcão News